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A Nova Roupa do Caibalion:

Associação duvidosa de um texto do início do Séc. XX com o Hermetismo

Por Nicholas E. Chapel[a] [i]



O Caibalion, publicado em 1912 pelo pseudônimo Três Iniciados, é amplamente considerado um clássico do esoterismo do século XX. O trabalho consiste em aforismos a partir de um texto de mesmo nome, bem como extensos comentários sobre estes. Ele descreve sete princípios ou leis universais “sobre as quais,” afirma, “toda a Filosofia Hermética é baseada.”1 Uma boa compreensão e aplicação dessas leis, de acordo com o texto, permitirá que um indivíduo alcance o autodomínio.
Já se reconhece amplamente hoje que O Caibalion, tanto como uma coleção de aforismos quanto de comentários subsequentes, foi um produto de um movimento do final do séc. XIX e início do século XX, o movimento do Novo Pensamento, e foi provavelmente escrito individualmente por William Walker Atkinson. Apesar da aceitação generalizada desta posição, no entanto, a associação auto-proclamada do Caibalion com Hermetismo tem sido em grande parte incontestada. Philip Deslippe, em sua introdução à edição Penguin/Tarcher de O Caibalion[ii], tem muito a dizer sobre o contexto do Novo Pensamento, do qual o trabalho emergiu, e trás convincentes argumentos sobre a autoria de Atkinson, mas, ao mesmo tempo, ele entusiasticamente promove O Caibalion como um herdeiro da tradição hermética, afirmando que ele “criou uma ponte entre os mundos ocultos dos séculos XIX e XX, amalgamando ensinamentos esotéricos e organizando-os de tal forma que iriam inspirar de maneira única um vasto e diversificado grupo de buscadores, até os dias de hoje.”2Enquanto o último pode ser verdade, quando afirma que O Caibalion é um exemplo de filosofia hermética, ou mesmo um herdeiro da mesma, ele pisa em um terreno consideravelmente mais frágil. Certamente, O Caibalion está firmemente arraigado na tradição esotérica ocidental. No entanto, estaria ele realmente em consonância com o domínio específico do Hermetismo? Este estudo realiza uma análise crítica do pensamento de O Caibalion em comparação e em contraste com o pensamento Hermético antigo e moderno, a fim de responder a esta pergunta. Além disso, apesar da associação do Caibalion com o Novo Pensamento não ser de forma alguma novidade, as análises detalhando os pontos em comum entre os dois campos têm sido, até agora, em grande parte de natureza superficial. Assim, um dos objetivos deste estudo é ilustrar também mais claramente as formas nas quais O Caibalion evidencia a doutrina do Novo Pensamento, e situá-las de forma adequada dentro deste contexto. E então, com O Caibalion situado em seu adequado quadro histórico, proceder-se-á o estudo para avaliar a conexão do Caibalion, ou falta dela, com o Hermetismo enquanto corrente histórica.
Antiguidade Espúria
Embora o Caibalion clame por antiguidade, ele é decididamente um produto da modernidade. O princípio da vibração que os aforismos tão fortemente enfatizam, por exemplo, teve sua origem na metade do século XVIII, com o filósofo britânico e médico David Hartley (1705-1757).3 O comentário sobre os aforismo é decididamente oriundo do século XX, referindo-se à obras que não foram publicadas até o início nos anos 90.4 A esmagadora probabilidade é que os aforismos foram cunhados concomitantemente aos comentários no início do século XX e apresentados como um produto do pensamento antigo, a fim de cobri-los com um verniz de respeitabilidade que a religião adquire quando se associa à uma tradição histórica. E esta não era uma prática incomum dentro do movimento do Novo Pensamento. Horatio Wills Dresser, uma figura proeminente nos círculos do Novo Pensamento, admite abertamente que “a tendência é atribuir ao Novo Pensamento muito mais do que pode ser reivindicado com precisão histórica.”5 Ele diz ainda que “esta história [de Novo Pensamento] pode desapontar alguns leitores, se tiverem criado em suas mentes a ideia de que é necessário olhar para o longínquo passado e descobrir ideias na Índia, na Grécia antiga, na Idade Média, que lembram as ideias terapêuticas de hoje.”6
A falsa pretensão de antiguidade de O Caibalion se estende até mesmo ao nome do próprio texto. A palavra “Caibalion” [N. do T., “Kybalion”] assume a forma de um substantivo grego, mas não tem nenhum significado nessa ou em qualquer outra língua. É possível que o nome tenha sido construído com uma similaridade em mente com a palavra Cabala, e outros têm especulado que ele foi inspirado pela deusa greco-romana Cybele (gr. Kubelē), mas como aponta Deslippe “a falta de qualquer correspondência ou referência a qualquer um deles dentro do Caibalion sugere que, se há alguma, estas não são nada mais do que mera coincidência.”7 Ao invés de coincidência, no entanto, parece que a explicação mais provável é que o título foi escolhido como uma alusão a uma ou ambas destas fontes para insinuar uma ligação com a antiguidade. O texto em si é silencioso quanto a este ponto, dizendo apenas “o sentido exato e o significado do termo [ter] sido perdido há muitos séculos.” 8

Apresentando O Caibalion
A tese central de O Caibalion é que a existência é regida por sete leis universais: Os princípios do mentalismo, correspondência, vibração, polaridade, ritmo, causa e efeito, e gênero.9 Resumidamente, esses princípios quando tomado como um conjunto esboçam uma forma de idealismo filosófico10 no qual o universo existe na mente da divindade; que o macrocosmo corresponde ao microcosmo; que as diferenças entre os diferentes estados da matéria, mente e espírito são o resultado de diferentes ritmos de vibração; que tudo tem o seu oposto mas que todos os opostos são, em última instância, idênticas em natureza; que não há um balanço natural e de inda e vinda entre os extremos opostos; que toda causa tem um efeito e vice-versa; e que em tudo evidencia-se qualidades masculinas e femininas.11O Caibalion em seguida, passa a detalhar uma habilidade de “Transmutação Mental”, que é definida como “a arte de mudar e transformar estados mentais, formas e condições, em outros” através do correto entendimento e aplicação dessas leis universais.12
À primeira vista, estes princípios são todos consonantes com a filosofia Hermética. Uma investigação mais profunda tanto do próprio pensamento quanto de seu contexto histórico correspondente, no entanto, revela que o trabalho é enfaticamente representante do movimento do Novo Pensamento Americano que surgiu no final do século XIX e início do XX.

A conexão com o Novo Pensamento
Originalmente conhecido sob muitos nomes, incluindo Ciência Mental, Ciência Cristã, e Cura Mental, antes de se cristalizar sob o nome geral de “Novo Pensamento” na década de 1890, o Novo Pensamento era, fundamentalmente, “psicologia de auto-ajuda popular” originária da década de 1870 e que prometia o domínio através da auto-disciplina.13 Em 1889, com o advento da Ciência Espiritual da Saúde e da Cura*de William Juvenal Colville, as terapias associadas com o Novo Pensamento tornaram-se espiritualizadas “de uma forma típica dos crentes em mediunidade ou espiritismo.”14 Assim, até então enquanto uma doutrina científico-espiritual, o Novo Pensamento forjou doravante suas raízes espirituais no Mesmerismo Americano.15
O exercício da mente sobre a matéria, que era uma preocupação central do Novo Pensamento, era conseguido “colocando-nos em uma nova relação com o mundo que nos cerca através da alteração do nosso pensamento a respeito dela.”16 Horatio Wills Dresser expõe mais sobre este princípio em sua introdução em O Espírito do Novo Pensamento, quando afirma que a doutrina “é uma teoria e método da vida mental, com especial referência à cura, e à promoção de atitudes, modos de conduta e crenças que contribuem para a saúde e para o bem-estar geral. A teoria, em suma, é que o homem leva uma vida essencialmente mental, influenciada, formada, e controlada por antecipações, esperanças e sugestões”.17
Este, de fato, é o foco da “Transmutação Mental” delineado no Caibalion. Um componente central da transmutação mental conforme encontrada no Novo Pensamento foi a “lei da atração”. Dentro Novo Pensamento a ênfase principal desta transmutação estava na cura do corpo e da mente. A doença física era considerada uma expressão externa do estado interior do indivíduo, este considerado o ponto focal da atração. Ao mudar a atitude mental através de afirmações e pensamento positivo, a doença poderia, portanto, ser curada e estados mentais problemáticos superados.18 Embora o princípio da influência da mente sobre a matéria fosse mais visivelmente aplicado à doença e ao bem-estar, com o passar do tempo passou a ser aplicado a outras áreas, incluindo a felicidade e realização espiritual.19
A compreensão e a adequada aplicação do pensamento e da atitude foi então considerada como essencialmente salvífica. Em contraste com o “velho pensamento”, que “era inegavelmente pessimista, […] habitando no pecado, enfatizando a escuridão e miséria do mundo, [e] a angústia e o sofrimento,” o Novo Pensamento “habitou a vida e a luz, apontando o caminho para o domínio de toda a dor e sofrimento.”20 A ênfase do Novo Pensamento no conhecimento salvífico muitas vezes vem sob a forma de uma doutrina de lei universal. “Em todas as coisas,” de acordo com Dresser, “há apenas uma lei. Essa lei é boa. É o princípio fundamental do universo. Mas, por ignorância, o homem sofre temporariamente e causa sofrimento porque ele não conhece a universalidade da lei – porque ele procura pela causa fora do seu próprio mundo interior.”21 O Novo Pensamento, por outro lado, “afirma que é possível que a alma comande a mente”, contanto que por sua vez ela “obedeça às leis da mente.”22
Quando o conteúdo do Caibalion é examinado à luz da filosofia do Novo Pensamento, torna-se prontamente aparente que o texto é fortemente representante desse meio. Esta associação torna-se ainda mais clara quando o trabalho de William Walker Atkinson, o autor provável do Caibalion, é examinado mais detalhadamente.

A conjectura da autoria de Atkinson
William Walker Atkinson era uma figura influente no movimento Novo Pensamento, tendo sido um editor de várias publicações e escrevendo abundantemente sobre uma variedade de temas, frequentemente usando pseudônimos. Ele diversas vezes se referiu aos seus escritos como ocultismo prático, Nova Psicologia e Novo Pensamento.23A meia dúzia de pseudônimos sob os quais ele escreveu foram igualmente exuberantes e diversificados, incluindo Yogi Ramachandra, Theron Q. Dumont, e Magus Incognito.24 Ele foi também um prolífico conferencista e trabalhou por um tempo como o vice-presidente honorário do International New Thought Alliance.25
Philip Deslippe, em sua introdução à edição Penguin/Tarcher de O Caibalion, defende uma forte tese que atribui autoria exclusiva do texto por Atkinson. Ele desconstrói muitas das outras especulações comuns a respeito de quem teria sido autor de O Caibalion, e fornece evidências de quesão, no mínimo, altamente sugestivas quanto ao fato de Atkinson ser a verdadeira face por trás dos Três Iniciados. Entre outras similaridades, ressalta o tema surpreendentemente comum de sete leis cósmicas ou universais no trabalho de Atkinson.26 Notável também é o fato de que na edição de 1912 do Who’s Who in America[iii], a informação biográfica que o próprio Atkinson submeteu inclui O Caibalion dentre sua lista de obras.27 Talvez o mais convincente para qualquer um que já se deparou com outros escritos de Atkinson, no entanto, é a estranha semelhança de estilo entre suas outras obras e O Caibalion. Deslippe mesmo observa que existem “semelhanças de conteúdo, formato e fontes de material [que] não existem com qualquer outro escritor”, e que na verdade “quando colocado lado a lado com outras obras de Atkinson do mesmo período, o estilo de O Caibalion é consistente e sem fronteira com eles, empregando o mesmo tom, voz, peculiaridades da sintaxe e escolha de palavras.”28
Mesmo após um exame superficial dos outros escritos de Atkinson, torna-se prontamente aparente que essas semelhanças são convincentes. Sua ênfase nas vibrações, na transmutação mental, na lei da atração, e na lei cósmica em geral, ecoa fortemente o conteúdo e prosa do Caibalion. Em Vibração do Pensamento ou a Lei da Atração no Mundo do Pensamento[iv], publicado contemporaneamente ao Caibalion, ele usa especificamente a frase “Transmutação de Pensamento”, e refere-se a este “segredo da Vontade” como “a chave mágica que abre todas as portas.”29 Ele desenvolve ainda mais esta ideia da “chave antiga” em A Lei do Novo Pensamento[v], quando afirma que “os escritores antigos cuidadosamente colocaram fragmentos de […] verdade esotérica dentre os escritos de grande circulação, sabendo que apenas aqueles com a chavepoderiam ler…”30 Ele continua,”[A] idéia da Unidade do Todo […] está no centro de todo o pensamento religioso, embora oculto, até que seja encontrada a chave. É a chave que abre todas as portas.”31 Compare isso com O Caibalion, que afirma que sua intenção é “colocar nas mãos do estudante uma Chave-Mestra com a qual ele pode abrir muitas portas interiores no Templo do Mistério através das portas principais que ele já adentrou”.32
O foco no conceito de vibrações e a maneira em que este material é apresentado também é muito semelhante entre as outras obras de Atkinson e O Caibalion. Em Vibração do Pensamento, Atkinson afirma que “a Luz e o Calor são manifestados por vibrações de uma intensidade muito mais baixa do que aquelas do Pensamento, mas a diferença é apenas na frequência de vibração.”33 Compare isso com o Caibalion, que afirma que “os ensinamentos [Herméticos] são para o efeito de que o Espírito está em uma extremidade do Pólo de Vibração, sendo o outro Pólo certas formas extremamente grosseiras de matéria.”34 Atkinson também nega a existência do acaso tanto em Vibração do Pensamentoquanto em O Caibalion. No primeiro, ele afirma que “não há tal coisa como acaso. A Lei se mantém em todos os lugares, e tudo o que acontece, acontece por causa da operação da Lei”.35 O Caibalion semelhantemente proclama que “tudo acontece de acordo com a Lei; o acaso nada mais é que um nome para a Lei não reconhecida.”36 Há também um curioso enfoque nadistinção entre o medo e a coragem. Em O Caibalion nos é dito que “no caso de um homem Temeroso”, ele pode “ser preenchido com o mais alto grau de Coragem e Destemor” ao “elevar suas vibrações mentais acima da linha do Medo-Coragem.”37Em Vibrações do Pensamento, Atkinson aconselha: “Quando sentirdes Medo, lembre-se que o Verdadeiro Eu nada teme, e afirmes a Coragem.”38 Aqui, a prosa é tão semelhante que Atkinson mesmo faz uso da mesma capitalização idiossincrática em ambas as obras, que talvez devesse não ser surpreende, dado que os dois trabalhos foram publicados com um ano de diferença do outro.
Não era algo incomum a reivindicação de Walker acerca de uma origem antiga para o Novo Pensamento do Caibalion. Vários outros autores conectaram o Novo Pensamento à Teosofia, Espiritismo, o panteísmo, a religião da Índia, e os ensinamentos de Emanuel Swedenborg.39 O Novo Pensamento “naturalmente encontrou variadas expressões porque apelou para indivíduos de diferentes tipos. Cada um se incutiu das ideias centrais e, em seguida, começou a desenvolver seus pontos de vista especiais ao redor destas.”40 Atkinson mesmo notável e consistentemente afirma que “não existe nada novo sobre essa verdade. A mesma coisa foi dito pelos antigos filósofos da Índia, há cinco mil anos; pelos filósofos da Grécia, dois mil e quinhentos anos atrás; por Berkeley, Hegel e Kant e seus seguidores”.41 Atkinson expõe mais sobre isso em A Lei do Novo Pensamento, quando afirma que “o Novo Pensamento é o pensamento mais antigo em existência. Foi estimado por uns poucos escolhidos em todas as idades; as massas do povo não estando prontas para seus ensinamentos. Ele tem sido chamado por todos os nomes – tem aparecido em todas as formas”42 Ele continua a afirmar que a doutrina do Novo Pensamento contém “poderosas verdades que têm se aninhado no seio dos ensinamentos esotéricos de todas as religiões, nas filosofias do passado e do presente, nos templos do Oriente, nas escolas da Grécia antiga.”43 De fato, a primeira parte de A Lei do Novo Pensamento é repleta de referências vagas à sabedoria oculta e os princípios místicos.
Dresser objeta fortemente esta pretensão de antiguidade, no entanto, afirmando que “o Novo Pensamento difere dos idealismos do passado apenas porque ela ignora-os e começa sobre uma base prática. Felizmente, seus pioneiros eram ignorantes sobre sistemas antigos.”44 E, de fato, Atkinson parece extremamente ignorante quando se trata de filosofia Hermética, como descobriremos em breve.

Semelhanças com o hermetismo
A doutrina de que o mundo físico é um reflexo das formas eternas dentro Deus é comum ao Platonismo, em geral, contribuindo para uma cosmologia idealista compartilhada entre O Caibalion e o Hermetismo. Israel Regardie expõe sobre a natureza do idealismo Hermético quando afirma que a Cabala, por si própria uma forma Platônica de misticismo, “é […] um idealismo objetivo. Todas as nossas percepções não são exclusivamente do ego, e nem daquilo que é percebido; elas são representações de certa relação e interação entre os dois.”48 Isto é verdade não só para a Cabala, claro, mas para a totalidade da filosofia Hermética que remonta ao próprio Corpus Hermeticum[vi]. O Hermetismo da Antiguidade Tardia considerou que o mundo era uma imagem de Deus, o qual inerentemente “pressupõe a visão do Médio Platonismo nas quais as ideias, à partir das quais o Demiurgo de Platão criou o mundo, estão contidas na mente (nous) do Deus supremo, como seus pensamentos.”49O Caibalion está, portanto, de acordo com o Hermetismo e, de fato, com a totalidade do meio platônico, quando afirma que “Tudo é Mente”. 50
No entanto, essa relação em comum não se dá apenas com o hermetismo. O idealismo filosófico é uma característica comum do movimento New Age como um todo, assim como a ideia de evolução que O Caibalion abraça tão prontamente. Na verdade, afirma Hanegraaff, “O tipo de idealismo que se revelou mais compatível para o novo evolucionismo viu o ‘mundo externo’ como dependendo de uma ‘Mente Absoluta, que era simultaneamente o modelo, a soma, e a base de todas as mentes individuais – alma individual universalizada.‘” 51
O conceito de superar conscientemente os desejos básicos e impulsos individuais pelo uso de faculdades mais elevadas, como se fosse superar a vontade com a Vontade, é também central para a filosofia do Caibalion, e é de fato um pré-requisito para a transmutação mental que ele promove. “A pessoa mediana”, afirma o Caibalion, “é preguiçosa demais para agir”, e “essas pessoas são governadas quase inteiramente pelas mentes e vontades de outras pessoas, a quem elas se permitem pensar e querer por elas”, enquanto “[os homens e mulheres fortes do mundo] dominam suas próprias mentes por sua Vontade.” 52 Dion Fortune concorda com esta avaliação quando ela afirma que “a direção das energias da vida devem ser removido do domínio dos desejos para o da vontade. Até que isso seja feito, não pode haver progressão constante em qualquer direção, porque os desejos são convocados de fora, e não dirigidos a partir do interior, e variam conforme o estímulo externo.”53
Além dos princípios da correspondência e mentalismo já abordados, os princípios da polaridade e gênero defendidos pelo Caibalion também são encontrados na filosofia Hermética. O Caibalionafirma que “Tudo é Duplo; tudo tem pólos; tudo tem o seu oposto;”54Este conceito de polaridade pode ser encontrado na cosmologia Cabalística, nos pilares duplos da Maçonaria e no simbolismo do templo da Golden Dawn, e em uma variedade de outros locais dentro do pensamento Hermético moderno. John Michael Greer articula este princípio que se aplica à filosofia Hermética, quando afirma, “a ideia essencial subjacente ao princípio da polaridade é que qualquer coisa no universo pode ser entendida, em termos mágicos, como uma relação energética entre duas forças opostas, resultando em uma terceira, uma força balanceada 55O princípio do gênero, que pode ser visto como uma articulação mais específica da polaridade, também encontra expressão na filosofia Hermética que remonta ao Corpus Hermeticum: “Que Deus é andrógino é repetidamente afirmado nos Poimandres(C.H. I, 9 e 15). De acordo com o Asclepius, 20, Deus está ‘completamente preenchido com a fecundidade de ambos os sexos’ (utraque sexus fecunditate plenissimus).”56O Asclepius, 21, continua: “Não apenas deus [é de ambos os sexos][…] como são todas as coisas animadas e sem alma, pois é impossível para qualquer uma das coisas que existem de serem inférteis.”57 Assim, o Caibalionestá de acordo com a tradição hermética de longa data, quando afirma que “tudo no mundo orgânico manifesta ambos os gêneros – existe sempre o Masculino presente na forma Feminina”.58

Pontos de Divergência
Com pelo menos quatro dos sete princípios fundamentais do Caibalionclaramente atestados dentro de fontes Herméticas, e do princípio da vibração tão comum dentro do movimento New Age que não cabe nem comentários, torna-se fácil associar o texto inteiro com a filosofia Hermética que ele clama representar. Esta associação é atraente, mas é, em última análise, baseada em pontos comuns relativamente superficiais. Quando se aprofunda no núcleo da filosofia Hermética, as semelhanças rapidamente começam a desmoronar.
A divergência mais facilmente visível se dá no domínio da cosmologia. Em comum com todas as filosofias Platônicas, o Hermetismo fala de uma multiplicidade de emanações da divindade. As diferentes posições diferem em número, mas o padrão é o mesmo: o Deus único dá origem a divindades ou princípios menores, estes responsáveis pela criação do mundo físico como demiurgos. Quando Pico della Mirandola produziu um casamento entre a Cabala e o Hermetismo, o ponto de vista cosmológico predominante foi mudado irrevogavelmente à estrutura déctupla[vii]cabalística. Este modelo viria a ofuscar as cosmologias originais da Hermetica[viii]. Comum a todos, no entanto, é o conceito de um número finito de manifestações discretas, sendo a final, mais baixa ou a “inferior” a que constitui o que percebemos como realidade física. Em contraste com essa visão, OCaibalion postula um modelo muito diferente da existência.
O Caibalioninicia sua exposição sobre cosmologia dividindo do universo em “três grandes classes de fenômenos, conhecidos como os Três Grandes Planos”, ou seja, o espiritual, o mental e o físico.59 Esta divisão tripartite entre anima, spiritus, e corpus não possui controvérsias, tendo uma longa história não apenas dentro de esoterismo ocidental como um todo, mas também na teologia exotérica. Conforme a perspectiva cosmológica do Caibalion,que é exposta adiante, no entanto, a semelhança se deteriora rapidamente. “Os Hermetistas”, afirma o Caibalion, “subdividem cada um dos Três Grandes Planos em Sete Planos menores, e cada um destes últimos também são subdivididos em sete subplanos, todas as divisões sendo mais ou menos arbitrárias, interpenetrando-se umas nas outras, e adotadas somente para conveniência do estudo científico e do pensamento.”60O número sete até poderia ser concebivelmente tomado como referentes aos sete planetas clássicos, mas isso seria forçado — e com as outras subdivisões sétuplas, resultaria em nada menos do que um esquema cosmológico de 147 níveis. Ainda mais dissonante com a base platônica sobre a qual o Hermetismo enquanto histórica é construído, é a afirmação de que cada uma dessas divisões são arbitrárias e contínuas. As divisões na cosmologia Hermética, sejam as descritas na Hermetica ou as do modelo cabalístico posterior, não são definitivamente nenhuma dessas. Ainda mais estranhamente, enquanto no pensamento Hermético acredita-se que todos nós estamos operando nos planos de corpo, mente e espírito simultaneamente, esse não parece ser o caso na perspectiva idiossincrática do Caibalion. Em vez disso, nele nós somos concebidos ocupando um plano por vez, dos 147 planos, e o destino da raça humana está em sempre evoluir rumo aos planos superiores. “O homem médio de hoje,” afirma o Caibalion “ocupa a quarta subdivisão do Plano da Mente Humana, e somente o mais inteligente cruzou as fronteiras da Quinta Subdivisão. Levou milhões de anos para a raça atingir esse estágio, e demorará mais muitos anos para a raça passar para a sexta e sétima subdivisões, e além.”61 Assim, o nosso destino não é a ascender misticamente através planos e unir-se com a divindade, mas sim evoluir ao longo de um caminho lento e laborioso como espécie em direção a esse objetivo final. Mesmo os deuses da humanidade, diz o Caibalion, são mortais como nós: “Podemos chamá-los de ‘deuses’ se quisermos, mas ainda são Irmãos Anciãos da Raça, — as almas avançadas que ultrapassam os seus irmãos, e que renunciaram ao êxtase da Absorção pelo TODO, a fim de ajudar a raça em sua jornada para subir o Caminho62 É curioso que em nenhuma outra parte do texto é feita alguma menção desta união extática com a Divindade, mas esta falta de ênfase parece típica do Caibalion.
Decerto, as diferenças na cosmologia são quase insignificantes em comparação com a diferença fundamental no foco do Caibalion, em contraste com a do Hermetismo em seus dois milênios. Hermetismo é e sempre foi central e imutavelmente focado no conhecimento experimental da divindade. Isto é evidente desde as primeiras linhas do Poimandres, em que o narrador afirma o seu maior desejo: “Quero aprender sobre as coisas que existem, para entender sua natureza e conhecer a Deus [gnōsai ton theon]” (C.H. I.3).63 O foco no conhecimento salvífico é tão central para o Hermetismo que em C.H.VII nos é dito que “o maior mal da humanidade é a ignorância [agnōsia] a respeito de Deus.”64 Até a ênfase cosmológica comum da Hermetica gira em torno dessa preocupação. A principal preocupação dos autores da Hermetica era “a causa última do universo, Deus e, portanto, o objetivo de todas as discussões sobre cosmologia e da criação era trazer o leitor ou o ouvinte através de admiração do cosmos para a adoração e de mística união com o Deus supremo”.65 O ponto de toda a discussão sobre a natureza do universo, os deuses, os céus e a terra, era elevar a audiência à gnosis divina. Em contraste, o Caibalion concentra-se no conhecimento da natureza do universo como um meio de obter conhecimento das leis universais, de modo que este conhecimento por sua vez possa facilitar a prática de transmutação mental, que é o foco central do texto.
Este conhecimento não é a gnose da Hermetica. O conhecimento da lei universal de que fala o Caibalion não representa um conhecimento experiencial alcançado através de um encontro com a divindade; em vez disso, é uma compreensão intelectual dos princípios da lei universal e a técnica de transmutação mental. Em conhecimento técnico, este cairia sob o conceito grego de episteme, ao invés de gnosis. O objetivo do Novo Pensamento, e com ele O Caibalion, “era eliminar as ‘falsas crenças’, ‘os erros da mente’, que tinha mantido [as pessoas] em sujeição.”66 A ênfase do Caibalion não era na gnose, mas na noesis, no sentido de que seu foco era uma “compreensão puramente intelectual.”67 Isto está em nítido contraste com a gnose divina, que se refere “não […] ao conhecimento racional, filosófico, mas a religioso, discernimento espiritual, baseada na revelação.”68
A Hermetica, paralelamente ao ambiente primevo do Médio Platonismo do qual surgiu o Hermetismo, exibe uma visão idealista do cosmos: o universo é criado da Mente do divino, e de fato o termo “Mente” (nous) é sinônimo de Deus supremo. Dado o foco central do Caibalion na mente e transmutação mental, seríamos naturalmente inclinados, portanto, a supor que esses princípios estão em consonância com a visão de mundo do Hermetismo. E, de fato não há nada contrário à filosofia Hermética no conceito de transmutação mental. Mas a mente de que fala o Caibalion não é a Mente da Hermetica. A Hermetica distingue Mente (nous) como o Deus Supremo, o Uno, o Bem — e o segundo Deus ou demiurgo chamado o logos. O pensamento do Caibalion é decididamente focado em logos, e esta é uma distinção fundamental entre o pensamento Hermético e o do Caibalion. A ênfase da Hermeticaestá na Mente divina como a mais elevada expressão da divindade. Todo o resto flui a partir desta Mente perfeita, e o objetivo dos Hermetistas era reunir-se à Mente. O Caibalion, por outro lado, define o cenário defendendo que o mundo existe na Mente macrocósmica — e então começa a mudar sua ênfase daí em diante para a transmutação da mente microcósmica do indivíduo. O Caibalion, portanto, é fundamentalmente preocupado com a mente ao invés da Mente, com logos ao invés de nous.
Nem, de acordo com o hermetismo, é o logos o foco próprio de sua reverência (eusebia), que deve ser apenas ao nous divino, como exposto em C.H.IV.4: “Todos aqueles que atentaram à proclamação [de Deus] e imergiram-se na mente [ebaptisanto tou noos] participaram em conhecimento e se tornaram pessoas perfeitas [teleoi] porque receberam mente. Mas aqueles que não se deram conta da proclamação são pessoas de razão [logikoi] porque elas não receberam mente e não sabem o propósito ou os agentes de seu vir a ser”.69Dada a terminologia grega usada na passagem, ebaptisanto sendo uma forma do mesmo verbo que significa “batizar”, mais reveladora seria se a tradução um pouco mais descontraída da antiga frase acima,levando em consideração as conotações do vocabulário, fosse: “Todos aqueles que […] se batizaram na Divindade participaram em conhecimento revelador e tornaram-se pessoas perfeitas porque receberam Deus.” Longe de direcionar a reverência do leitor para com o nous da divindade, O Caibalion evidencia uma completa falta de ênfase na piedade. O conceito de reverência (eusebia) é absolutamente central para a filosofia Hermética, e o foco na interrelação entre Deus, o mundo e a humanidade é um componente predominante deste pensamento. 70 Não é através da prática de transmutação mental do Caibalion, de acordo com a Hermetica, mas sim através de reverência que seus pensamentos da pessoa são alterados: “reverência [eusebia] é o conhecimento [gnōsis] de deus, e aquele que chegou a conhecer a Deus, preenchido de todas as coisas boas, tem pensamentos que são divinos e não como aqueles da multidão.”71
O “objetivo unânime” dos Hermetistas era “trazer o leitor para o louvor e adoração do Deus supremo, que é ‘não visível [i. e. cognoscível], mas evidente dentro do visível’.”72No Poimandres, e no Discurso sobre a Ogdóada e a Enéada, os autores “vão ainda mais longe e descrevem experiências de êxtase em que o hermetista deixa sua condição terrena para trás e sente-se unido com o Deus supremo ou o universo.”73
Para ser justo com Atkinson, deve-se notar que os manuscritos de Nag Hammadi e, portanto, o texto do Discurso sobre o Ogdóada e a Enéada, não haviam sidos descobertos até 1945 e eram, portanto, desconhecidos durante a escrita de O Caibalion, e as Definições não haviam sido publicadas até 1956. Independentemente das “diferenças consideráveis” que existem nas expressões de misticismo Hermético do Corpus Hermeticum, no entanto, “todos eles têm em comum que o hermetista trata de um conhecimento intuitivo de si mesmo, o universo e Deus – um conhecimento que transcende as faculdades mentais humanas comuns e é experienciada como uma unificação com o fundamento do ser, Deus.”74O Caibalion não demonstra nenhuma ênfase na experiência extática de unidade com o divino ou a realização da gnose salvadora.
Em sua totalidade, O Caibalion parece cometer o erro de confundir os meios com o fim. A Transmutação Mental é considerado o auge da filosofia Hermética. Uma pequena análise textual serve poderosamente para reforçar essa impressão. Das 22 instâncias em que características e habilidades são atribuídas aos “Mestres” ou “Os Hermetistas”, termos que são usados ​​alternadamente, cada um deles refere-se à capacidade de controlar seu mundo mental: a dominar os seus humores, transmutando e dominando seus estados mentais, alcançando estabilidade emocional e desenvolvimento poderes para controlar o mundo à sua volta.75 Mesmo as passagens referentes ao Mestre ou o Hermetista controlar a causa e efeito se voltam, em última análise, para o controle de estados emocionais e mentais. Seu poder sobre-humano, no final, não é nada mais do que uma forma de continência mental. Seu domínio é alcançado através da compreensão das leis naturais e ao colocá-las em prática, ao invés de ascender nos planos para alcançar união extática com a divindade.
Pode ser certo que esta ênfase na lei cósmica e sua aplicação adequada tem um lugar dentro da filosofia Hermética. Dion Fortune, em O Treinamento e Trabalho de Um Iniciado[ix], lista como suas três divisões do ocultismo “harmonização com a Lei Cósmica por meio de entendimento correto”, “ajuste das desarmonias por meio do uso correto do poder que o conhecimento confere,” e “purificação da alma através de boas obras em todos os planos.”76 O Caibalion, claro, mostra forte ênfase em pelo menos os primeiros dois pontos, e se interpretarmos o autodomínio mental dos “Mestres” do Caibalione sua capacidade de moldar o mundo à sua volta, assim como aplicado para a realização de boas obras, podemos incluir este último princípio também. Mas Fortune prossegue afirmando que “não há nada de intrinsecamente espiritual sobre qualquer uma [dessas três coisas], mas no entanto, eles são os três primeiros passos da escada que leva até as alturas do Espírito […] [grifo nosso].”77 Assim, este conhecimento das leis universais e a harmonização do indivíduo com elas é meramente o início da jornada, em vez de o objetivo final, como retratado em O Caibalion. A Hermetica é consistente com este ponto, bem como quando eles afirmam em C.H.III.3-4, “E através do curso do trabalho milagroso dos deuses cíclicos eles criaram cada alma encarnada para contemplar o céu, […] as obras de Deus e as obras da natureza; […] Para conhecer o poder divino; […] E descobrir todos os meios de trabalhar habilmente com coisas que são boas. Para eles, este é o começo da vida virtuosa e do pensamento sábio, tanto quanto o curso dos deuses cíclicos destina-a…”78 A Hermetica, assim, concorda que este conhecimento e seu consequente poder é o início da vida virtuosa, ao invés do objetivo da mesma.
Para um texto que pretende ser uma obra de filosofia Hermética, O Caibalionsurpreendentemente tem pouco a dizer sobre Deus. Atkinson fala do “TODO” com alguma frequência, mas isso parece um pouco como um meio para um fim: após os rudimentos da cosmologia os atributos de Deus são deixados de fora, pouca atenção é dada a eles para além do seu papel no apoio à subjacente estrutura do universo que facilita a técnica de transmutação mental. Na verdade, O Caibalion é veemente e explicitamente anti-teológico em sua orientação, um traço que parece decididamente estranho em justaposição com a orientação da filosofia Hermética. No Caibalion nos é dito que “a teologia significa as tentativas dos homens de atribuir personalidade, qualidades e características [ao TODO]; suas teorias sobre seus assuntos, vontade, desejos, planos e projetos, e sua assunção do ofício de ‘homens-intermediários’ entre o TODO e as pessoas”, e adiante é dito que “Teologia e Metafísica parecem juncos delgados, enraizados nas areias movediças da ignorância.”79 Ironicamente, imediatamente após condenar a atribuição de qualidades e características ao “TODO”, o próprio Atkinson continua na mesma página atribuindo-lhe as qualidades e características de infinito, onipotência, imutabilidade, e eternidade.80 Embora o Caibalion conceda aos termos “Religião” e “Filosofia” bastante crédito, dizendo que estes se referem a “coisas que têm raízes na Realidade”, esta distinção é na melhor das hipóteses especiosa.81É impossível determinar o que é a chamada “Realidade” sem recorrer a algum tipo de suposição metafísica e teológica. Existe a sugestão de que o que constitui a realidade deve simplesmente ser tomado como axiomático; mas enquanto isso pode ser retoricamente atraente, que o que fazemos é Religião e Filosofia; o que eles fazem é Teologia, isso é filosoficamente repleto de dificuldades. Assim como não existe tal coisa como um almoço livre, também não há tal coisa como uma metafísica livre. Em contraste com a posição do Caibalion, a filosofia Hermética sempre se envolveu fortemente em teologia. A Hermetica está repleta de descrições de Deus e da natureza da realidade última, da palavra de vários intermediários entre Deus e o homem sob o pretexto de serem demiurgos assim como asiarcas planetários, os deuses inteligíveis e sensíveis, e várias outras entidades, e da relação entre o divino e o humano.82A Hermeticafilosófica, de acordo com Copenhaver, “lida, ao invés disso, com questões teológicasou,falando de modo menos rigoroso, com questões filosóficas: ela revela ao homem o conhecimento das origens, natureza e propriedades morais do ser divino, humano e material para que o homem possa usar esse conhecimento para se salvar. Pela mesma filosofia piedosa ou piedade filosófica – uma mistura de teologia, cosmogonia, antropogonia, ética, soteriologia e escatologia – também se caracteriza o Asclepius Latino […]”.83Festugière, ao encontrar a Hermética grandemente disparatada em seus ensinamentos, identificou”uma certa atitude de piedade, um certo estado de espírito que se baseia em verter cada indagação filosófica na direção da piedade e do conhecimento de Deus”que é o único fio condutor que conecta todo o Corpus.84 Isto constitui a preocupação central da Hermetica. Depreciar a teologia, portanto, é em alguma medida equivalente a condenar a própria Hermetica em si.
Perspectivas modernas sobre O Caibalion
Até agora vimos que enquanto o Caibalion mantém um certo grau de consonância com o Hermetismo enquanto corrente histórica, as divergências são muitas e profundas. Autores contemporâneos, no entanto, parecem estranhamente determinados a exonerar O Caibalionde críticas de que o condenaria como um texto que não é autenticamente Hermético. Deslippe, em sua introdução à edição Penguin/Tarcher de O Caibalion, defende o trabalho com relação a este ponto —seu trabalho fez um movimento surpreendente ao desmascarar Atkinson como o único autor e associando o texto com o movimento do Novo Pensamento em que Atkinson fazia parte. Enquanto Deslippe reconhece que os “axiomas Herméticos” do Caibalion provavelmente tiveram suas origens no próprio pensamento de Atkinson ao invés de longa tradição, ele defende que “os elementos do Caibalionque viriam a ser contestadas ou caluniados estão perfeitamente alinhados com o espírito da história do Hermetismo”.85Em seguida, ele continua a fazer sua apologia em vários pontos distintos. Na primeira delas, ele afirma que “para criticar O Caibalion como um tipo de ensinamento espiritual impuro, inautêntico ou ao ficar preocupado com o fato de Atkinson ter usado um pseudônimo ou questionar a autoridade do texto, é de algum modo um ataque por ele ser tradicionalmente Hermético.”86A prática de usar pseudônimo sé de fato comum em toda a história do Hermetismo; mas enquanto a autoria do pseudônimo de Atkinson pode ser defendida, isso não torna o texto autenticamente Hermético. E nem pela ênfase na lei cósmica, que Deslippe se refere quando ele afirma que “era comum para os grupos existentes sob a bandeira do Hermetismo descreverem o universo em termos de leis cósmicas ou universais.”87Ambas as práticas eram e ainda são comuns em numerosos domínios, não somente no Hermetismo. O foco na lei cósmica é comum à totalidade do movimento moderno New Age, do qual Novo Pensamento foi um componente seminal, e autoria com pseudônimos tem sido uma prática tão comum ao longo dos milênios que não demandanem maiores comentários.
Deslippe prossegue associando O Caibalion ao Hermetismo via referência à Tabula Smaragdina, ou Tábua de Esmeralda. “O paralelo mais próximo a um imaginado Caibalion antigo”, afirma ele, “teria sido a Tábua de Esmeralda Hermética […] As breves treze linhas da Tábua de Esmeralda rudemente proporcionam uma estrutura semelhante como as Sete Leis Herméticas do Caibalion, e ambos utilizam a famoso linha Hermética, ‘Assim como é em cima, é abaixo.’”88 Ele afirma ainda que “enquanto a Tábua de Esmeralda […] reduziu a filosofia Hermética em uma série de curtos axiomas, o Caibalion argumentou sobre seus pontos, explicando e detalhando cada axioma e fornecendo uma estrutura subjacente para eles.”89 Esta é uma afirmação extremamente bizarra, e que só pode ser levada ou como uma tentativa bastante forçada para “cobrir o Caibalion com um verniz hermético” ou como evidência de uma profunda falta de familiaridade com a própria Tábua de Esmeralda. A Tábua de Esmeralda é a origem do axioma ”Assim como é em cima, é abaixo”90 que Atkinson faz ecoar no Caibalion, mas a semelhança entre os dois textos termina por aí. Para além desta única frase, a Tábua de Esmeralda não oferece axiomas, muito menos uma estrutura semelhante às Sete Leis Herméticas do Caibalion. Se a semelhança mais forte entre O Caibalion e hermetismo só é encontrada na Tábua de Esmeralda, a relação entre os dois é realmente muito escassa.
Deslippe não é de modo algum o único autor que tem defendido O Caibalionde acusações de que ele é inautêntico hermeticamente. Richard Smoley, autor de uma variedade de trabalhos em esoterismo ocidental e ex-editor da revista Gnosis, admite que “os aforismos em O Caibalion são muito provavelmente uma fraude piedosa”, mas ao mesmo tempo em que ele sustenta que “existe uma enorme diferença entre os ensinamentos Herméticos originais e as doutrinas do Caibalion recheadas de doutrinas de Novo Pensamento,” ele acredita, no entanto, que “seria equivocado concluir que esse trabalho é infiel à tradição que ele evoca.”91 Como vimos, entretanto, não é meramente da Hermetica original que O Caibalion difere, dada a comparação com o Corpus Hermeticum que fornece a mais visível evidência da divergência do trabalho com o pensamento Hermético como um todo. As raízes da gnosis, da reverência, e comunhão extática com o divino que foram plantadas na Antiguidade Tardia têm permanecido central no Hermetismo, mesmo com este tendo várias ramificações que brotaram durante o Renascimento e modernidade.
Apesar da centralidade dos valores acima para a filosofia Hermética, no entanto, poder-se-ia questionar se todos os textos que clamam serem herdeiros da tradição Hermética precisam necessariamente evidenciar todas essas características. O Hermetismo é uma ampla tenda, esta que deu origem a numerosas expressões de teoria e prática. Mas ainda que não seja necessário que um texto envolva-se em teologia a fim de encontrar um lugar confortável dentro do domínio Hermético, isso estaria no mínimo fortemente inconsonante com o corpo de pensamentos estabelecido. Especialmente se o texto alega ser um trabalho de filosofiaHermética, como faz O Caibalion, ele se coloca sob a responsabilidade de todo corpo filosófico existente dentro da Hermetica e outros trabalhos. O texto falha a esse respeito. Como tal, a suposição longamente sustentada de que O Caibalion é consonante com a filosofia Hermética como corrente histórica é errôneae precisa derevisão.
Hermetismo há muito se apropriou de ideias e até mesmo de sistemas inteiros que não se originaram de dentro de seu próprio meio. Como um movimento fortemente sincrético tanto nos tempos antigos quanto modernos, ele incorpora uma mistura eclética de temas. Ao gnosticismo pagão Greco-Egípcio original do Corpus Hermeticum, estudiosos do Renascimento acrescentaram Cabala Judaica e magia angelical. John Dee contribuiu com um esquema completo de pensamento e prática Enochianos. No século XVII, o Rosicrucianismo floresceu sob a bandeira de Hermes Trismegisto. A Golden Dawn contribuiu com a sua influência ritual para-maçônica e forneceu uma estrutura coerente de tal modo que não havia sido visto desde De occulta philosophia de Agripa, quatro séculos e meio antes. Mesmo estes, no entanto, representam a evolução lógica da literatura mágica Greco-Egípcia da chamada “Hermetica técnica”, e evidenciam um foco no divino que está totalmente ausente em O Caibalion. Pode oCaibalion hoje pode ser considerado uma parte da tradição hermética, simplesmente em razão de sua ampla aceitação nesse contexto? Possivelmente, talvez. Mas isto é antes puramente em virtude de assimilação, do que em virtude de suas próprias qualidades essenciais. Em análise final, O Caibalion nada diz sobre a tradição Hermética — mesmo que a tradição Hermética contemporânea tenha muito a dizer sobre O Caibalion.
Notas
1. Three Initiates, The Kybalion: A Study of the Hermetic Philosophy of Ancient Egypt and Greece (1908; reimpressão, Chicago: The Yogi Publication Society, 1940), 25.
2. Philip Deslippe, introdução ao The Kybalion: The Definitive Edition, by William Walker Atkinson writing as Three Initiates, edited by Philip Deslippe (New York: Jeremy P. Tarcher/Penguin, 2011), 1.
3. Barbara Bowen Oberg, “David Hartley and the Association of Ideas”, Journal of the History of Ideas 37, no. 3 (1976), 442-443.
4. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 19.
5. Horatio Wills Dresser, A History of the New Thought Movement (New York: Thomas Y. Crowell Company, 1919), v.
6. Ibid.
7. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 18.
8. Three Initiates, Kybalion, 21.
9. Three Initiates, Kybalion, 25-26.
10. Simon Blackburn, ed., The Oxford Dictionary of Philosophy, 2nd ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), s.v. “idealism” – “Any doctrine holding that reality is fundamentally mental in nature.”(Qualquer doutrina que sustente que a realidade é fundamentalmente mental em natureza)
11. Three Initiates, Kybalion, 25-40.
12. Ibid., 45.
13. Wouter J. Hanegraaff, ed., Dictionary of Gnosis and Western Esotericism (Leiden: E. J. Brill, 2006), s.v. “New Thought Movement”
14. Dresser, History, 136.
15. Wouter J. Hanegraaff, New Age Religion and Western Culture: Esotericism in the Mirror of Secular Thought, Studies in the History of Religions (Numen Book Series) LXXII (Leiden: E. J. Brill, 1996), 483-485.
16. Sarah J. Farmer, “The Abundant Life”, in The Spirit of New Thought: Essays and Addresses by Representative Authors and Leaders, editado por Horatio Wills Dresser (New York: Thomas Y. Crowell Company, 1917), 31.
17. Horatio Wills Dresser, introdução ao The Spirit of the New Thought: Essays and Addresses by Representative Authors and Leaders, edited by Horatio Wills Dresser (New York: Thomas Y. Crowell Company, 1919).
18. Dresser, History, 161-162.
19. Dictionary of Gnosis and Western Esotericism, s.v. “New Thought Movement”
20. Dresser, History, 160.
21. Dresser, intro. ao Spirit of the New Thought, 12.
22. Nannie S. Bond, “The New Thought”, in The Spirit of the New Thought: Essays and Addresses by Representative Authors and Leaders, editado por Horatio Wills Dresser (New York: Thomas Y. Crowell Company, 1917), 138-139.
23. Deslippe, intro. to The Kybalion, 3.
24. Ibid., 3.
25. Ibid., 3-4.
26. Ibid., 20.
27. Ibid., 21.
28. Ibid., 20-21.
29. William Walker Atkinson, Thought Vibration or the Law of Attraction in the Thought World (Chicago: The Library Shelf, 1909), 2-4, 38, 50.
30. William Walker Atkinson, The Law of the New Thought, edited by Lux Newman and Phineas Parkhurst Quimby Philosophical Society (1902; reimpressão, n.p.: Seed of Life Publishing, 2008), 2. Ênfase no original.
31. Ibid., 8. Ênfase no original.
32. Three Initiates, Kybalion, 8.
33. Atkinson, Thought Vibration, 3.
34. Three Initiates, Kybalion, 138.
35. Atkinson, Thought Vibration, 110.
36. Three Initiates, The Kybalion, 38.
37. Ibid., 154.
38. Atkinson, Thought Vibration, 35.
39. Dresser, History, 145-146.
40. Ibid., 146.
41. Atkinson, citado em Dresser, History, 313.
42. Atkinson, Law of the New Thought, 1.
43. Ibid., 2.
44. Dresser, History, 313.
45. Three Initiates, Kybalion, 28. Esse axioma é usado em diversos outros lugares no texto.
46. Ibid., Kybalion, 113.
47. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
48. Israel Regardie, A Garden of Pomegranates: Skrying on the Tree of Life, edited by Chic Cicero and Sandra Tabatha Cicero, 3rd ed. (St. Paul, MN: Llewellyn Publications, 1999), 128.
49. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
50. Three Initiates, Kybalion, 26.
51. Hanegraaff, New Age Religion, 467.
52. Three Initiates, Kybalion, 205-206.
53. Dion Fortune, The Training and Work of An Initiate, 2nd ed. (London: The Aquarian Press, 1955), 22.
54. Three Initiates, Kybalion, 32.
55. John Michael Greer, Paths of Wisdom: The Magical Cabala in the Western Tradition, Llewellyn’s High Magick Series (St. Paul, MN: Llewellyn Publications, 1996), 32. Emphasis in original.
56. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
57. Brian P. Copenhaver, Hermetica: The Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius in a New English Translation, with Notes and Introduction (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), 79.
58. Three Initiates, Kybalion, 189.
59. Three Initiates, Kybalion, 113-114.
60. Ibid., 118.
61. Ibid., 126.
62. Ibid., 131.
63. Copenhaver, Hermetica, 1.
64. Ibid., 24.
65. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermeticism”
66. Dresser, History, 132.
67. Webster’s Third New International Dictionary, s.v. “noesis”
68. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Gnosticism I: Gnostic Religion”
69. Copenhaver, Hermetica, 15-16.
70. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
71. C.H. IX.4. Copenhaver, Hermetica, 28.
72. Armenian Definitions 1, 2, Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermetism”
73. Ibid.
74. Ibid.
75. Three Initiates, Kybalion, inteiro.
76. Fortune, Training, 69.
77. Ibid.
78. Copenhaver, Hermetica, 13-14.
79. Three Initiates, Kybalion, 57-58.
80. Ibid., 59-61.
81. Ibid., 58.
82. Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, s.v. “Hermeticism”
83. Copenhaver, Hermetica, xxxii.
84. Festugière, citado em Copenhaver, Hermetica, lv.
85. Deslippe, intro. ao The Kybalion, 15.
86. Ibid., 16.
87. Ibid, 29.
88. Ibid., 17.
89. Ibid., 14.
90. “Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicud quod est inferius, ad perpetranda miracula rei unius.” (De acordo com o texto de Chrysogonus Polydorus, Nuremburg 1541)
91. Richard Smoley, “The Mysterious Kybalion,” New Dawn Magazine 124 (Jan-Feb 2011), 13-14.


[a]Nicholas E. Chapel é pesquisador na área de Esoterismo Ocidental por mais de vinte anos. Completou sua graduação em religião na Duke University, e suas pesquisas têm como foco os movimentos esotéricos do final do século XIX e início do século XX. Chapel mora e trabalha em Minneapolis, Minnesota, onde mantém sua pesquisa como acadêmico independente, e é também membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada.


[i]Traduzido por Lucas Moraes de Araújo,de Chapel, N.E. “The Kybalion’s New Clothes: An Early 20th Century Text’s Dubious Association with Hermeticism”, disponível em
< http://www.jwmt.org/v3n24/chapel.html>
[ii]Em inglês “The Kybalion” , o autor se refere a uma das edições cuja introdução escrita por Phipip Deslippe não consta na versão popularizada de O Caibalionno Brasil, pela editora Pensamento.N.do T.
* Título original em inglês “The Spiritual Science of Health and Healing”, N. do T.
[iii]Livro de uma série de publicações americanas que traz dados biográficos e informações pessoais de pessoas famosas, e que segundo o autor, Marquis, “busca traçar o perfil dos líderes da sociedade americana, homens e mulheres que influenciam o desenvolvimento da nação”, N. do T.
[iv] Do inglês “Thought Vibration or the Law of Attraction in the Thought World”, N. do T.
[v]Do inglês “The Law of the New Thought”, N. do T.
[vi]Conjunto de dezoito textos greco-egípcios fundacionais do Hermetismo, escritos entre os anos 100 e 300 d.C.  na então província romana do Egito, e traduzidos para o latim no séc XV. Eles se apresentam em maior parte na forma de diálogos onde um mestre, identificado como Hermes Trismegistos, elucida um discípulo. Eles discorrem sobre o divino, o cosmos, a mente, a natureza e por vezes a alquimia, astrologia e conceitos afins. Os textos são a base do Hermetismo. N. do T.
[vii]Estrutura “de dez” sephirot da árvore da vida cabalística. N. do T.
[viii]Corpus Hermeticum, ou Hermetica. N. do T.
[ix] Do inglês “The Training and Work of An Initiate” de Dion Fortune. N. do T.

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