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(i)Manifesto Transaberes

uma disciplina é um conhecimento aprisionado em uma taxonomia qualquer

“Oh, dia, levanta! Os átomos dançam,
As almas, loucas de êxtase dançam.
A abóbada celeste, por causa deste Ser, dança,
Ao ouvido te direi aonde a leva sua dança.”

“À noite, pedi a um velho sábio
que me contasse todos os segredos do universo.
Ele murmurou lentamente em meu ouvido:
– Isto não se pode dizer, isto se aprende”.
Jalaluddin Rumi

Urge explicitar a necessidade dos transaberes. Estamos cansados das ditas “disciplinas”. Uma disciplina é um conhecimento aprisionado em uma taxonomia qualquer. Tal aprisionamento se tornou um vício do pensar.

Mas antes de prosseguir será preciso definições de “tipos” de conhecimento:
Disciplinar: forma de conhecimento organizada em axiomas básicos com um núcleo duro de pressupostos, com pouca ou nenhuma relação com outra disciplina. A disciplina visa disciplinar, em outras palavras, adestrar o pensar àquela disciplina.
Multidisciplinar: o avizinhamento de disciplinas, “conhecimento enciclopédico”: matemática, física, história, filosofia etc
Interdisciplinar: existe uma relação entre as disciplinas, produz-se um atravessamento: as relações entre filosofia e física (máquina abstrata e atrator estranho, respectivamente); a engenharia que se utiliza da física e matemática para produzir.
Transdisciplinar: as disciplinas se tornam fundo, ponto de partida para se produzir um saber múltiplo composto por relações de disciplinas, agora tornadas uma nova disciplina, transdisciplinar: a alquimia que relaciona a filosofia da natureza como experimento laboratorial.

Porém, não basta “pensar”. O pensamento é um aspecto da vida, pode ser meramente conceitual e pouco prático. Necessitamos de um pensamento aplicado à vida, que se amalgame com o sentir. Precisamos de intuição. O pensar/sentir é a intuição e ela, não é mais da ordem da disciplina e sim, da liberdade do saber. Assim, o pensamento está para a sabedoria, como a disciplina está para o saber. O saber nunca é disciplinar, ele não impõe, ele não doutrina. O saber torna a vida ética. Não existe saber da ordem do “multi” ou “inter”, o saber sempre foi trans, atravessamento, aliança da intuição com a vida. Nem uma pura ontologia, muito menos uma epistemologia, mas uma epistemontologia, visto que o saber não opera por dualidades, mas por composição: não existe isolamento no saber, mas apenas relações de relações. O saber raramente usa o hífen para compor, dualidade dissimulada. O saber propõe novos conceitos práticos, que emergem da intuição. O saber é a disciplina totalmente permeável, por exemplo, a Ontologia Onírica.

O saber pode compor com qualquer coisa: filosofia, física, antropologia, literatura, música, cinema, magia, espiritualidade, dor de dente, pedras. Não existem proibições para o saber, apenas modulações, no sentido que um saber melhor é o mais necessário para uma provisória relação de forças. Exemplo: a Mecânica Quântica e a Monadologia podem ser muito úteis para conceituar melhor a consciência, mas a Teoria do Caos e o Hermetismo são mais necessários para se pensar a relação entre arte e vida, mas são apenas modulações, ênfases, relevâncias, visto que os quatro campos são úteis para pensar ambos os problemas, e estes também se relacionam. O saber é imanente ao seu “objeto” de forma que se torna precário falar em “sujeito” e “objeto”, falemos sim em atratores, relação de relações, vortex, campo de forças. A Monadologia não é um saber “em si” mas um saber na relação com outros. Pois evidencia-se que todo saber é transaber, um suposto saber nunca se isola, pois é da prática da sabedoria relacionar: a Ética de Spinoza que é um corpo contínuo de saber, mas o viés pode apreendê-lo simultaneamente como um tratado de óptica, teologia, ética etc.

Vejamos o caso de Isaac Newton. Sua sabedoria envolvia física, matemática, filosofia, alquimia, magia, teologia etc. O que se seguiu depois dele, o “newtonianismo”, foi uma dilaceração de seu saber em disciplinas físico-matemáticas. Newton era sábio, o newtonianismo é disciplinar.

Porquê um (i)manifesto? Porque estamos saturados de “manifestos”, estamos compondo também com o imanifesto, transcendências, mas a posteriori, religiões, ainda que entendidas como re-ligare, religações de mundo e linguagem, caos e vida: Tao, impermanências, feitiçarias etc.

Não se tolera mais nenhuma dualidade, nenhuma ilusão de “parte” definitiva. Toda “parte” é, de fato, uma mudança na gradação: meu corpo é mais denso que o ar, por isso eu o atravesso, mas somos imanentes. Um e múltiplo como imanência e modulação de coagulações e descoagulações.

Também não há mais crença alguma na ausência de movimento, mas em gradações de velocidades, ainda que um vortex possa estar aparentemente sem deslocamento. Ali, quase imóvel, ainda possui velocidade, velocidade que não é mais da ordem do “ser”. O verbo ser não indica essência ou coisa assim, o verbo ser se torna sinônimo de devir.

Um transaber possui devires estranhos a ele, isso nos diz que um transaber nunca é definitivo, mas provisório e não “garante” nada, mas exercita atos éticos, cultivo de cosmos ético. O transaber é ético por definição, se não produz aumento de potência no intuir é porque não é saber, mas disciplina. Um transaber pode deixar de devir e, com isso, transcender rumo ao Inominável, mas a partir daí não intuímos (muito menos sabemos) mais nada. Essa transcendência nunca é a priori, mas as transcendências a priori decretam disciplinas essenciais que axiomatizam e aprisionam a intuição, relegando-a ao pensamento, sendo, de fato, imanências virtuais. A intuição só possui axiomas provisórios e intercambiáveis.

Um transaber possui dinâmicas que ressoam com a filosofia oriental e os Estóicos, no sentido que um saber se desdobra contínuo e imanente, diferente das ideias parciais – conectadas ou não – da filosofia ocidental em geral.

Um transaber nunca é um abrigo na Tempestade, mas é a Tempestade em si, nos torna Tempestade, em que o perigo é evitado pela precisão dos passos da dança tempestuosa.

Um transaber convoca ao amor, mas amor como liberdade, como comunhão de cosmos com o cosmos, não é isolamento contratual de partes.

Um transaber não intui por neuroses, existem apenas devir, ética, sendo que os problemas derivados disso são níveis de preguiça existencial, diques no devir. Não existem aqui conceitos patológicos, muito menos psicopatológicos, taxionomias tristes. Existem apenas níveis de gradação de preguiça existencial, cuja alternativa é intuir mais e mais transaberes.

Um transaber é sempre experimental, nunca é definitivo.

Um transaber nunca é “final”, sempre procurando mais e melhores relações, alianças, composições, agenciamentos, ressonâncias. Tampouco é teleológico, ainda que possua leves tendências provisórias: um transaber suscita devires.

Um transaber não “está” no espaço nem no tempo, mas entre eles. A emergência de um transaber é indício que algum vortex apreendeu esse entre intensivo.

Um transaber não aponta o sentido, mas produz novos sentidos processualmente, no sentido que o sentido da vida é criar sentidos para ela.

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